1 de março de 2001

Ter cancro não significa morrer mas sim lutar pela vida
Ser Criança com Cancro


Para muitas pessoas “cancro” é ainda uma palavra tabu mas para as famílias das crianças com cancro este deixa de ser uma palavra para passar a ser uma realidade. A cura, essa, é a esperança de todos e o objectivo de quem trabalha com estas crianças. Felizmente, em 60% dos casos também se torna em realidade.

Ana, João, Sofia, Miguel, Patricia, Marco são nomes fictícios de seis crianças com cancro. São seis dos 300 novos casos de crianças com cancro que surgem todos os anos em Portugal. Mas afinal o que é o cancro? «O cancro é uma doença que surge quando as células do corpo se começam a multiplicar descontroladamente. A função normal da célula é interrompida, e à medida que o número de células aumenta estas vão formando uma massa ou tumor». São palavras de Ana Paula, médica de clinica geral, que já teve alguns doentes com cancro.


Se no caso dos adultos existem grupos de risco e se dá importância aos factores ambientais, ao tabaco e à alimentação, com as crianças não é bem assim. «O cancro é na maior parte das vezes de origem embrionária, com uma forte base genética, embora não se possam desprezar os factores ambientais». Na verdade, as causas do cancro infantil são ainda desconhecidas não sendo assim possível estabelecer qualquer tipo de relação causa efeito ou qual a origem do tumor. Existem diversos tipos de cancro, sendo que os casos mais frequentes são as leucemias e os linfomas.

O caso de Madalena é diferente. Aos 10 anos foi-lhe diagnosticado um rabdomiosarcoma, um tumor que se forma no músculo, e que exigiu um tratamento de cerca de dois anos que segundo confessa «foi muito doloroso». Madalena foi tratada no Instituto Português de Oncologia de Lisboa (IPO) primeiro por Gentil Martins e depois pelo médico Valença de Sousa e enquanto esteve internada manteve uma óptima relação com o Hospital. Tal como a maior parte das crianças como ela, Madalena passou pelas três fases de tratamento: primeiro a quimioterapia para destruir as células malignas afastadas do tumor, depois a radioterapia para destruir as células cancerígenas, e por último, a cirurgia para extrair o tumor. Foram momentos dolorosos: «os tratamentos eram...a pessoa estava mal de levar os tratamentos à 6ª feira e ficava mal até 2ª, sem comer nada e a vomitar... a vomitar».

E se é verdade que não tinha uma grande relação com os outros doentes Madalena recorda-se de uma grande amiga: «Nós andávamos na mesma escola e fizemos os tratamentos juntas. Ela morreu. A pessoa questiona-se um bocado...porque é que ela morreu e eu estou viva?» Os pais estiveram sempre presentes e apesar do primeiro impacto de descobrirem que tinham uma filha com cancro e questionarem-se «porquê?» nunca a trataram de maneira diferente: «eu tenho mais dois irmãos e dentro da normalidade eu era apenas mais uma na família e nunca senti que eles tivessem pena de mim, o que é um factor óptimo».

Na escola o apoio da família também se fez sentir, principalmente quando usou cabeleira «para que os outros não percebessem que estava careca». Os professores sabiam do caso da Madalena mas também aí foi tratada como todos os outros e os professores «exigiam tudo o que pudesse dar». E Madalena acrescenta que «a melhor coisa do mundo quando existe uma situação destas a nível de crianças é a pessoa tratar da criança como criança e não como um coitadinho...»

Hoje tudo é diferente

«Eu fiquei boa, tive um crescimento super normal, estive na faculdade, acabei o meu curso». De aluna Madalena passou a professora, de doente a sinal de esperança para crianças e pais. Passados 20 anos, Madalena assume agora com naturalidade aquilo por que passou. «Na altura o cancro era sinónimo de morte...eu nem sequer conseguia dizer que tinha um cancro. Só há cerca de quatro anos é que o consigo dizer com naturalidade, dizia sempre que tinha um tumor ou qualquer coisa...».

Hoje, mais do que nunca, diz perceber «o que é o sofrimento dos pais quando lhes aparece um filho com cancro» e reconhece o apoio fantástico que os pais lhe deram. «Se eu lhes perguntava alguma coisa eles diziam-me sempre a verdade. Se os tratamentos iam ser dolorosos eles diziam que ia doer um bocadinho e isso preparava-me para a dor»

Apesar de curada, Madalena regressa todas as semanas ao IPO para dar apoio aos que lá estão e àqueles que vão chegando. Com 30 anos, mas aparentando muito menos, Madalena conhece aquele Hospital tão bem como quem lá trabalha e reconhece que muito tem sido feito para minorar o sofrimento das crianças que têm de estar internadas: «já existem remédios para os enjôos e agora os miúdos têm cateteres, um tubo que vai directamente a uma veia do coração e faz com que eles não tenham de ser picados, e isso ajuda muito».

Mas o espaço lúdico também não está esquecido. Quem chega ao 7º piso do IPO de Lisboa reconhece logo que é ali a pediatria. Na entrada, onde apenas se tem contacto com a recepção, vêem-se cartazes de iniciativas, fotografias de crianças e desenhos. Na porta para o mundo da esperança um apelo: «Precisamos de Sangue».
Lá dentro reinam as crianças, rapazes e raparigas entre os 4 e os 13 anos. Nas paredes também estão afixados bonecos, alguns com mensagens especiais: «Já estou boa, já posso ir à escola». Mas quem está internado faz o quê? «Na minha altura não me lembro de ver um único brinquedo no hospital mas hoje em dia já há muitas coisas dentro do hospital para os miúdos», explica Madalena.

Mas a história de Madalena não é a única com final feliz. Margarida, antiga enfermeira na pediatria do IPO de Lisboa recorda-se com alegria do caso de um bebe madeirense com cerca de um ano.«Era uma criança muito pequenina e foi dito aos pais que era melhor regressarem à Madeira para a criança morrer dignamente, em casa com a família, e por mais incrível que pareça a criança hoje tem 20 anos, está curada e dá apoio a crianças com esse mesmo problema».

Mais do que um profissional, um amigo

Pediatras, enfermeiras, psicólogo, assistente social, educadoras de infância e voluntárias são apenas alguns dos profissionais que apoiam, esclarecem e, acima de tudo, ouvem os familiares e as crianças com cancro. Desde o dia do diagnóstico, passando pelos tratamentos e recaídas, até à saída definitiva do IPO, com um sorriso nos lábios ou com lágrimas a cair pela cara, todos sabem que podem contar com eles.

«Os pais chegam numa fase muito sensível», é Margarida, antiga enfermeira no 7º piso actualmente a trabalhar no Centro de Saúde de Camarate, quem o diz «e cria-se uma ligação muito forte entre enfermeiros, pais e crianças». Esta ligação perdura e torna-se essencial na altura de dar a notícia às crianças.

De acordo com a enfermeira Margarida a notícia não deve ser dada apenas num dia mas ao longo de um período: «primeiro é importante explicar à criança porque é que está ali, depois explicar o tratamento e aí o papel do enfermeiro e do médico para explicar aspectos específicos é fundamental». As reacções, essas, são muito diversas até pela idade de cada um – com menos de quatro anos «a criança não percebe o que se passa mas tem medo, sabem que existe dor», por outro lado uma criança mais velha já percebe o que tem e que é necessário o tratamento. Os adolescentes são os mais difíceis de lidar «porque estão numa fase de grandes alterações a nível psicológico e a nível físico e não conseguem depois ver o cabelo a desaparecer, não conseguem lidar com o facto de estarem tanto tempo hospitalizados», explica Margarida. De modo geral «o seu sentimento inicial é de revolta e agressividade mas depois compreendem e aceitam» acrescenta.

Educadoras e voluntárias têm também um papel importante. Uma vez por semana as crianças do IPO têm aulas com uma professora destacada pelo Ministério da Educação que procura de algum modo colmatar a falta da escola e o consequente atraso na formação das crianças que têm de permanecer internadas.
Por sua vez as voluntárias, umas ligadas à Liga Portuguesa Contra o Cancro outras à Acreditar, dividem a sua acção entre pais e crianças e procuram quebrar a rotina dos mais novos com pequenos passeios e festas.

A Esperança da Cura

«Os pais na busca de uma esperança, porque lhes era dada uma certeza de cura, iam a Espanha fazer o tratamento com as crianças. Depois, como em Espanha utilizavam protocolos de quimioterapia muito fortes as crianças vinham para Portugal muito mal», este é um alerta da enfermeira Margarida para uma situação que ocorreu com frequência com crianças anteriormente tratadas no IPO. Os pais na busca da cura, insatisfeitos com os resultados do tratamento em Portugal, recorriam então a Espanha onde de acordo com a enfermeira Margarida, «faziam tratamentos caríssimos e depois não havia cura nenhuma».

Apesar de na maior parte dos casos o cancro ter cura, este é ainda a segunda causa de morte infantil. O caminho para a cura está a ser percorrido mas é um percurso longo que ninguém sabe quando vai acabar. Estão em curso diversas investigações e já se fala em vacinas e comprimidos que poderão ser a tão desejada cura. Por enquanto a melhor cura é na opinião dos especialistas «o diagnóstico precoce». Relativamente ao tratamento quimioterapia, radioterapia, cirurgia e transplante de medula óssea são as melhores opções que existem até agora.

Para os pais e crianças com cancro, cujo sonho mais desejado é a cura, Madalena tem um conselho: «Vivam cada dia, não vivam em função do futuro. Tentem viver em paz o dia-a-dia e tenham esperança porque a cura também existe e é possível». Para os outros, que se questionam sobre o que é que se pode fazer Madalena sorri, porque afinal, como ela própria diz, «às vezes basta um simples sorriso!».


Lições de Vida

«Eu acho as crianças diferentes das outras crianças», quem o diz é a enfermeira Margarida que hoje continua a trabalhar em saúde infantil. Mas é importante que se explique porque é que estas crianças são diferentes. São diferentes não pela doença que têm mas pela maneira como encaram a vida, pelo modo como vivem a vida. É a célebre história de ser necessário “enfrentar a morte” para dar valor à vida e ter prazer em estar vivo. E se alguém tiver dúvidas basta estar algum tempo com uma destas crianças ou falar com alguém que conviva com elas e então é possível aprender verdadeiras lições de vida.

trabalho universitario