22 de abril de 2003

CULTURA
Levity: tranquilidade, luz, cor e muita magia

Quem passar nos próximos dias pelo Centro Cultural de Belém vai encontrar uma estrutura no mínimo estranha. Já lhe chamaram catedral, nave espacial ou até mesmo bolo de aniversário. Levity é uma estrutura pneumática, idealizada por Alan Parkinson, que em tempo de férias da Páscoa promete entreter as crianças e relaxar os adultos. Lá dentro espera-os um jogo de luz e de cor acompanhado por uma música tranquila. Um programa para toda a família que pode ser visto até 1 de Maio.

À primeira vista é uma tenda enorme, muito colorida e com um formato diferente. Uns dizem que se parece com um bolo enorme, outros com um castelo encantado. Para Madalena Vitorino, responsável pelo centro de pedagogia e animação, «é o nosso bolo», numa referência ao aniversário do Centro Cultural de Belém (CCB).

Mas o que é afinal esta estrutura colorida instalada na praça do museu no CCB que dá pelo nome de «Levity»? Alain Parkinson é um dos criadores e explica: «É um conjunto de torres que estão ligadas por túneis e algumas das torres têm cores muito dominantes. É uma reinterpretação de uma forma geométrica sólida numa forma plástica pneumática».

Se o exterior da estrutura, só por si, já suscita alguma surpresa entre quem chega, no interior a situação não é diferente. Marta e Miguel Nunes são irmãos. Têm sete e treze anos, respectivamente, e aproveitaram uma tarde sem aulas para virem com os pais ver o «Levity». Comprados os bilhetes é tempo de partir à descoberta. O primeiro passo é tirar os sapatos porque «o plástico é um material delicado e lá dentro só se pode andar de meias», como explica um dos monitores que recebe os visitantes. Descalços, atravessam a «porta de embarque» e entram num enorme labirinto feito de plástico colorido. Lá dentro não há absolutamente nada. São 800 metros quadrados de plástico onde só há ar, luz natural, muita cor e uma música tranquila que acompanha os visitantes.

De olhos bem abertos, as reacções dos mais novos não se fazem esperar. «Tantas cores! Parece o arco-íris...», diz Marta admirada. O irmão prefere fazer comparações com a praia: «ali parece uma gruta da praia e a música...lembra o mar e o vento». Os pais sorriem... Para eles é diferente - aquilo que os seduz é a tranquilidade que ali se sente.

«Levity» é acima de tudo um mundo sensorial que varia de pessoa para pessoa, de momento para momento, de espaço para espaço consoante a luz que atravessa os plásticos coloridos cortados e colados à mão. Algumas zonas são mais escuras e frescas outras mais claras e quentes. «Aquilo que se vê e sente depende da imaginação de cada um» referem os guias.

Do verde passam para o vermelho, depois para o azul e no centro encontram uma grande abóbada multicolor. O espaço já estava explorado mas ninguém se queria ir embora. «Podemos brincar às escondidas?» pergunta Marta. Porque não? «Levity» é um espaço de liberdade onde se pode fazer quase tudo. E não há que ter pressa: pode-se lá ficar o tempo que se quiser. «É um espaço que convida ao relaxamento» diz Alain Parkinson. Por isso mesmo não estranhe se encontrar aqui e ali algumas pessoas sentadas ou deitadas, de olhos fechados (ou mesmo a dormir) a aproveitar o momento. Esse é aliás um dos objectivos desta estrutura.

Os pais de Marta e Miguel não fogem à regra e enquanto os filhos se escondem algures no labirinto colorido eles aproveitam para se libertarem «do stress acumulado depois de uma semana de trabalho», explicam.
Em contrapartida as crianças de várias escolas que exploram o espaço, em fila indiana e de mão dada, não parecem interessadas em relaxar. Tal como Marta e Miguel preferiam estar a saltar e a brincar dentro do enorme labirinto. Muitas achavam que o Levity «era mais um castelo insuflável», mas mesmo assim não saem desapontadas. Sentam-se, deitam-se, ouvem histórias e fazem pequenos jogos comandados pela imaginação. Afinal, lá dentro, quase tudo é possível.

Levity foi criado em 1992 e já viajou de Berlim a Dublin e de Singapura a Seatle. Em Lisboa pode ser visto, até 1 de Maio, no CCB. Há visitas guiadas e livres e, paralelamente, funcionam várias oficinas de dança, artes plásticas e escrita que permitem desenvolver actividades com os mais novos.

trabalho universitário

8 de abril de 2003

Ano Europeu da Pessoa com Deficiência
Falar e cantar com as mãos


Paula Teixeira tem 27 anos e faz aquilo que gosta. A música deixou de ser um hobbie. A língua gestual deixou de ser gestos sem sentido. Paula juntou as duas actividades, abandonou o curso de educadora de infância especial e hoje é cantora e intérprete de língua gestual. Às quartas-feiras podemos encontrá-la a actuar n’ Os Templários, um bar da noite lisboeta. Na manhã seguinte, depois de quase fazer uma directa, está a gravar o programa que a tornou conhecida entre as crianças. Pelo meio trabalha na Associação Portuguesa de Surdos. Surdos e ouvintes podem vê-la ao fim-de-semana no «Batatoon» num cantinho da televisão a traduzir o mundo da fantasia.

Falámos com Paula Teixeira antes de uma das suas actuações e entre um café e umas pipocas com sal a menina que fala com as mãos deu a conhecer um pouco mais de si e da comunidade surda.

Quando é que começou a ser intérprete de língua gestual?
Comecei há mais ou menos sete anos. Sempre tive uma grande curiosidade de saber o que eram aqueles gestos, o que é que aquilo queria dizer. Na altura estava a tirar o curso de educadora de infância especial e comecei o curso básico de língua gestual onde aprendi as bases da língua.

E depois?
Mal entrei naquela associação era só surdos e o interesse começou a crescer. Ainda por cima tive um professor que é irresistível.

Antes do curso de língua gestual já conhecia pessoas surdas?
Não conhecia absolutamente ninguém. Meti-me ali assim do zero. Mas normalmente a grande parte dos intérpretes que existe tem familiares surdos e teve necessidade de aprender a língua para servir de intérprete para a família. E aprendem a língua desde muito pequeninos. Imagina que os teus pais são surdos, não te ensinam a dizer mamã. ensinam-te a dizer mamã [faz a palavra com as mãos] com um gesto. E eu vejo isso: miúdos pequeninos que são ouvintes mas têm os pais surdos falam muito pouco.

Foi fácil conciliar os dois cursos?
Eu estava a tirar os dois cursos ao mesmo tempo e como tinham horários incompatíveis tive de escolher. Ou escolhes o curso que te dá o canudo e o estatuto para educadora de infância ou então segues o que o teu coração te diz e não tens nenhum diploma mas é aquilo que realmente sentes que deves fazer. E foi o que eu fiz. Desisti da faculdade e meti-me de corpo e alma no curso de intérprete. Foi um curso intensivo, durou três anos, mas mesmo assim é muito difícil aprender as bases todas e aprender a língua gestual toda. É muito complicado...

Quais foram as maiores dificuldades que teve nessa aprendizagem?
A grande dificuldade deste curso é que se não tiveres ninguém com quem falar perdes a língua automaticamente. Eu aprendi muito mais depois do curso porque comecei a fazer amizades com surdos e a ter um relacionamento muito mais profundo e sistemático. Nessa altura tens de te safar de qualquer maneira e estás sempre a pensar “ como é que se diz isto”. É muito complicado porque a língua gestual também tem as suas características gramaticais e é sempre difícil entender logo à primeira. São precisos muitos anos. É difícil, mas quando se gosta realmente acho que se vai até ao fim.

Acha que a língua gestual poderia ser uma disciplina de opção ao nível do secundário tal como o inglês, o francês ou o alemão?
Acho! Acho que isso devia ser implantado em Portugal. Para já porque há muita procura, muito interesse e, porque não? Porque não aprender outra língua que é tão importante como o inglês ou o francês. É uma língua, é a língua dos surdos. Mas é tão bonito de se ver, de falar. Porque não aprender?

Como é que surge a música no meio disto tudo?
Comecei a cantar aos 12 anos numa festa de solidariedade para crianças deficientes profundas no Teatro Maria Matos. Foi a primeira vez que pisei um palco na minha vida. Depois foram surgindo outras coisas...
Formou bandas, tocou em bares, cruzeiros de turismo, casinos, participou no «Reis do Estúdio» e ficou em segundo lugar na final do «Chuva de Estrelas». O programa abriu-lhe portas?
Foi muito bom... Passado estes anos todos ainda fazemos espectáculos juntos. No início de Abril vamos à Alemanha. O «Chuva» abriu portas a nível de concertos maiores e tive muitos convites para gravar - propostas aliciantes, principalmente a nível monetário - mas eu só ia gravar se cantasse uma coisa com alma e decidi esperar e acreditar que algum dia ia chegar a minha oportunidade.

Essa oportunidade acabou por surgir...
Sim. Eu estava a tocar com a minha banda num bar e estava lá o director da Universal que deixou recado ao dono do bar para eu ir no dia seguinte à Editora. Eu achei estranho mas fui ver...foi muito bom porque ia de encontro ao que eu estava à espera. Mas depois ele saiu da Universal e eu fui com ele.

E o que é que aconteceu?
Ele acabou por se ir embora mas deixou-me numa editora independente, a Off The Record, que lançou o disco [Promessa]. Acreditei que por ser mais pequena se calhar me dava mais apoio mas não é bem assim porque quando não há muito poder económico as coisas não andam, é complicado...

E o novo álbum?
Já está a ser preparado mas vamos lá ver. Não antecipo datas porque não quero precipitar as coisas... Quando estiver tudo sera lançado!

Como é que vai ser?
Vai ter mais rock, vai ser mais eu. Vai ter mais músicas minhas. Estou a escrever muito mais porque acho que é muito importante um artista não só interpretar as músicas mas também compor. Se as fizer vai cantar com muito mais alma.

Os Surdos sentem a música?
Sim, sentem. E isso eu aprendi com eles. Na altura em que entrei no curso de língua gestual e no tal mundo do silêncio fui ao «Chuva de Estrelas» cantar Gloria Estefan e foi espectacular porque quando eu cheguei à Associação eles disseram-me «cantaste muito bem, adorámos ouvir-te cantar». Aquilo soou-me tão estranho... E eles viram que a minha cara devia ser estranhíssima. Até que depois me explicaram o que é que tinham feito: tinham posto a televisão no máximo e metido as mãos nas colunas, sentiam o que eu estava a cantar, as vibrações, a alma da música.

Isso foi muito importante ?
Sim, a partir daí tracei um rumo à minha vida, fez-se luz. Passado algumas semanas fiz um concerto para uma plateia de surdos e foi espectacular. Uma coisa de que me orgulho bastante é de agora ter o meu próprio projecto de originais, com a minha própria música e cantar em língua gestual. Ou seja, a música tanto chega aos ouvintes, como aos surdos ou aos cegos. Chega a toda a gente. E eles ensinaram-me isso. Porque eu não tinha a noção do que era sentir a música. Quando consegues transmitir alma e sentimento àquelas pessoas que não te ouvem mas estão ali a vibrar e a cantar contigo o refrão é espectacular...

Como é que surgiu a ideia de também cantar em língua gestual?
Foi na própria associação de surdos onde trabalho. Eu nunca tinha pensado nisso. Foram eles que me incentivaram a fazê-lo. Orgulho-me bastante e quero sensibilizar as pessoas para isso porque acho que é muito importante e eles também estão muito orgulhosos por isso, porque alguém os está a valorizar, está a dizer que «não somos assim tão anormais, somos perfeitamente normais, também ouvimos música».

Faz sempre a língua gestual enquanto está cantar?
Normalmente, mesmo que não estejam surdos tento sempre sensibilizar as pessoas. Eu acho que é tornar a música especial. Mas se há pessoas que não estão a ligar ou se estão naquela de estar a ouvir música mas sem prestar muita atenção então não faço. Não quero banalizar a língua. Mas quando há surdos... - e eles vêm, vêm aqui imensos surdos, o que é estranho para as pessoas verem entrar uma data de surdos a gesticular por todo o lado - e eu vou cantar tento traduzir para não estarem tão à parte.

É difícil?
É complicado porque é um grande desafio cantares músicas que nem sequer estás a imaginar como é aquilo traduzido. Mas como sabes que tens ali pessoas a olhar para ti e à espera de perceber aquilo que estás a dizer tento sempre traduzir da melhor maneira. Não sou uma expert, ainda me falta muito para ser uma grande interprete mas tenho muita vontade de aprender.

A par da música também colaborou com diversos programas televisivos...
No «Big Brother» foi muito giro e foi muito importante porque muita gente via o BB. Os concorrentes empenharam-se bastante e quando a Adelaide Ferreira foi lá eles acabaram por cantar novamente em língua gestual... Muita gente ficou interessada e sensibilizada com a comunidade surda e a língua gestual. Para além disso, continuo no «Batatoon» a passar o mundo da fantasia aos meninos que não ouvem. Infelizmente o programa agora é só aos fins-de-semana, às 7.30 da manhã.

Acha que essa mediatização da língua gestual tem sensibilizado mais as pessoas face à comunidade surda?
Acho, acho mesmo. Há muito mais procura... Na Associação de Surdos há inúmeros telefonemas a dizer «vi na televisão», «como é que se aprende», «gostava de aprender» e há muitas pessoas na rua que às vezes me perguntam «tu não és aquela menina da televisão que faz assim com as mãos». Há muito mais procura, o que é bom, é muito bom, devia haver muito mais mãos a falar!

Devia haver mais programas traduzidos para língua gestual na televisão portuguesa?
Sem dúvida nenhuma. Imagina o que és surdo e estás durante o dia a trabalhar. Tens o canal dois a traduzir política ou notícias ao inicio da tarde. Ou seja está tudo a trabalhar, tu não tens nada... Se queres realmente saber o que se está a passar tens de ligar a televisão durante a tarde e aí a maior parte das pessoas está a trabalhar. Para as crianças em não sei quantos anos de televisão o «Batatoon» é o primeiro programa a ser traduzido.

Ainda falta fazer muita coisa...
Falta muita informação. Não há programas a serem traduzidos. Quando caiu a ponte de Entre-os-Rios a Associação estava cheia de surdos mas não estava lá nenhum ouvinte. De repente olham para a televisão e vêem a ponte a cair, aquele alarido... O que é que se passa? Ou quando as torres foram abatidas no 11 de Setembro... Eu tenho tentado mexer os cordelinhos mas é muito difícil. Tentámos fazer um projecto na TVI para traduzir no horário nobre nem que fosse o resumo da semana, 5 ou 10 minutos, mas já se passou um ano e não deu em nada. É mesmo um bocado de discriminação. Se os directores das televisões tivessem familiares surdos ou sentissem isso na pele provavelmente isto já não seria assim. Mas eu tenho esperança de que ainda se consiga alguma coisa.

Os surdos ainda têm de enfrentar muitas dificuldades na sociedade?
Têm porque há muita discriminação e isso vê-se em todo o lado. As pessoas ainda não estão sensibilizadas. Falta ainda muito, ainda há muito para fazer. Eu já fiz n serviços. Acompanho surdos ao banco, ao médico, a diversas situações. Imagina que queres comprar um carro precisas de um intérprete; se te queres casar precisas de um intérprete. Às vezes os intérpretes são um mal necessário. Agora já é mais fácil com os telemoveis porque há as mensagens mas é um bocado complicado. Mas acho que as pessoas se vão sensibilizar ao longo do tempo.

Na Associação são procurados para todo o tipo de trabalhos?
Exactamente. Já fizemos n coisas. Todos os dias tenho trabalhos diferentes. Todo o tipo de situação que possas imaginar. Ha situações em que é complicado, se precisas de um intérprete e se o intérprete não pode, o que acontece muitas vezes porque somos poucos e há muitos surdos, o surdo fica um bocado sujeito à disponibilidade dos intérpretes.

E como é que é a vida da comunidade surda?
Eles fazem uma vida perfeitamente normal. Os surdos entre eles tem uma vida social muito agitada, festas, encontros... É muito bom porque são muito amigos, é uma comunidade muito unida. As pessoas às vezes é que pensam «coitados, não ouvem». Realmente precisam de um intérprete para algumas coisas mas fazem a vida deles normalmente. O problema muitas vezes acaba por não estar neles mas sim nas outras pessoas. Eles esforçam-se imenso e explicam-se, e se tu tentares perceber consegues. Porque há pessoas em que se percebe perfeitamente o que eles dizem. Eles não são mudos, não têm nenhum problema nas cordas vocais. Eles não falam com surdos porque não ouvem a voz.


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