5 de fevereiro de 2002

RETRATOS
O Silêncio no Mundo dos Sons


Maria, Francisco e João têm vidas muito diferentes. Separa-os a diferença de idades e a distância geográfica dos locais onde vivem. Não se conhecem mas vivem no mesmo mundo sem som que partilham com cerca de 150 mil portugueses. Maria, Francisco e João são surdos e trabalham naquilo que gostam, mas até aí as histórias são diferentes...

Lisboa, 7:30 horas. Maria Vitorino acorda com as vibrações do despertador para mais um dia de trabalho. É assim todas as manhãs. Maria tem 32 anos e nasceu ouvinte tal como os pais mas como recorda, tudo mudou na sequência de uma meningite: «estive doente e fiquei surda aos dois anos».

Seguiu-se um processo de aprendizagem para enfrentar um mundo novo onde não se ouvem vozes e se comunica com as mãos. Passou pela escola da Associação de Pais para a Educação de Crianças com Deficiências Auditivas e pela Escola Quinta de Marrocos em Benfica onde concluiu o 6ºano. Depois veio «o curso de cabeleireira na Casa Pia». Hoje, é isso que faz. Às 9:00 horas lá está ela no cabeleireiro com um sorriso na cara pronta a trabalhar. Lava, penteia, corta, pinta, não tem medo de trabalhar. Até às 19 horas, como ela própria afirma: «faço tudo o que for preciso».

«Falo a língua gestual e leio os lábios» por isso não existem problemas de comunicação. Discriminação? Maria não se sente discriminada e diz que «as pessoas reagem muito bem». Apesar de esta ser uma boa experiência, Maria Vitorino reconhece que a integração dos surdos na vida profissional «é difícil devido às dificuldades de compreensão e à falta de apoios na sociedade». Talvez por isso quando lhe perguntam que conselho dá a surdos e ouvintes Maria apenas diz «compreensão» com esperança de que «todos sejam felizes».

Senhor professor

«Nasci surdo e estudei até à universidade sem problemas» quem o diz é Francisco Goulão, 50 anos, e professor há mais de 24 anos no Porto. É um dos poucos surdos, cerca de 1%, que concluiu o Ensino Universitário. Estudou no Colégio de S. Francisco de Salles que hoje lembra com saudade: «foi o melhor colégio do país enquanto escola especial para crianças surdas mas foi extinto». De Lisboa guarda as recordações do convívio com os ouvintes durante os anos de estudo.

Licenciado na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, hoje, Francisco Goulão diz-se realizado e enquanto professor de trabalhos manuais ensina os seus alunos surdos a serem homens. Quadros, postais, desenhos e peças de teatro são apenas algumas das actividades onde o professor Goulão deixa uma marca da sua arte e da criatividade dos alunos.

Sempre foi uma pessoa crítica pronta a lutar pelos direitos dos surdos. Hoje a posição crítica mantém-se, e os alvos são os sucessivos governos que na opinião do professor Goulão «nada fazem para apoiar os problemas dos surdos». Por isso tem receio que no futuro «possa haver muitos problemas para as crianças e para os adultos surdos por causa do sistema educativo e do problema laboral»

Um trabalho diferente

João tem 24 anos é magro, alto, alegre e brincalhão. Há um ano que de vez em quando despe a sua pele para passar a ser outra pessoa. Cara pintada, cabeleira posta, batatinha no nariz e aqui está um Palhasurdo!
João é surdo e trabalha como voluntário na Associação Portuguesa de Surdos em Lisboa. É um dos cinco elementos dos Palhasurdos (palhaços que são surdos), um projecto que começou há dois anos e já fez muitos sorrisos: «vamos a festas há um ano e a reacção é muito boa, as crianças riem-se muito», explica.

Este ano os Palhasurdos vão receber novos elementos pois como o João refere «há muitos pedidos e temos que melhorar porque há muitos surdos». A preocupação de João face ao número crescente de surdos é importante mas como todos referem a sociedade nem sempre pensa como ele. Cerca de 20 mil surdos estão integrados na vida profissional mas essa é apenas uma das barreiras que têm de ultrapassar para viver num mundo de sons onde por vezes apenas existe silêncio.

Cantar para quem não ouve

Falar com as mãos, é esta a profissão de Paula Teixeira. Os mais novos, conhecem-na do Batatoon. Uma vez por semana lá está ela no cantinho da televisão a traduzir o mundo da fantasia às crianças surdas ou a ensinar uma palavra em língua gestual a quem quiser aprender.

A par da sua actividade enquanto intérprete de língua gestual Paula tem outra paixão - cantar para toda a gente, incluindo a comunidade surda. Porque se é verdade que eles não conseguem ouvir, ninguém melhor do que eles para sentir a música. Como? Paula explica: «sentem o que se está a cantar, as vibrações, a alma da música».Hoje, com o seu próprio projecto Paula promete continuar a lutar e a sensibilizar as pessoas cantando com as mãos para que todos a possam “ouvir“.

trabalho universitario publicado (http://www.pcd.pt/noticias/ver.php?id=203)